Uma das minhas incursões pelo voluntariado me permitiu vivenciar e estudar a questão da segurança alimentar e nutricional no Brasil.
Durante quatro anos participei dos Conselhos Municipal e Estadual de Segurança alimentar e nutricional no estado de São Paulo. Movimento capitaneado pelo bispo católico Don Mauro Morelli procurava conscientizar para o direito universal do acesso pleno a uma alimentação digna.
Essa passagem pelos CONSEA’s me fez refletir sobre uma questão central: a ilusão das médias.
No mundo da análise de dados, as médias são ferramentas poderosas. Elas nos oferecem um panorama geral, uma visão simplificada de realidades complexas. No entanto, é importante entender que essa simplificação pode ser uma faca de dois gumes.
Ao nos apegarmos apenas aos números médios, corremos o risco de mascarar profundas desigualdades e problemas sociais que se escondem por trás da aparente normalidade.
Um exemplo clássico e impactante dessa armadilha é a análise do consumo médio de carne per capita no mundo. Frequentemente, ouvimos que o consumo médio mundial de carne gira em torno de 46 quilos por pessoa ao ano. À primeira vista, esse dado pode sugerir uma distribuição razoável ou até mesmo um cenário de abundância. No entanto, essa média, por si só, é uma ilusão perigosa que ignora a realidade de milhões de pessoas.
A realidade por trás dos números: desigualdade e insegurança alimentar.
Quando aprofundamos a análise, percebemos que essa média global é drasticamente distorcida por padrões de consumo extremamente díspares. Enquanto países como Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia apresentam um consumo médio que pode ultrapassar os 100 quilos por pessoa anualmente, ou seja, mais que o dobro da média global, outras nações enfrentam uma realidade brutalmente diferente.
Em contraste, em países como Etiópia, Ruanda e Nigéria, o consumo de carne per capita pode ser inferior a 10 quilos por ano. Essa disparidade gritante não é apenas uma questão de preferência cultural ou dietética; é um reflexo direto de bolsões de miséria, insegurança alimentar e a ausência de condições mínimas para uma vida digna e saudável.
A média global, nesse contexto, não apenas falha em representar a realidade, mas também a esconde, tornando invisíveis as necessidades urgentes de populações vulneráveis.
A fome persiste
Apesar de algumas melhorias pontuais, a fome e a insegurança alimentar continuam sendo desafios globais prementes. Relatórios recentes da Organização das Nações Unidas (ONU) indicam que, em 2024, aproximadamente 8,2% da população mundial – cerca de 673 milhões de pessoas – ainda enfrentou a fome.
Embora haja uma ligeira queda em relação a anos anteriores, o número absoluto de pessoas em situação de fome permanece alarmantemente alto. Em 2023, mais de 864 milhões de pessoas experimentaram insegurança alimentar grave, ficando sem comida por um dia inteiro ou mais.
Esses números são um lembrete contundente de que, mesmo com a produção global de alimentos sendo teoricamente suficiente para alimentar a todos, a distribuição desigual e o acesso limitado persistem.
A média de consumo de carne, ou de qualquer outro alimento, não reflete a capacidade de compra, a disponibilidade local, as crises econômicas, os conflitos ou as mudanças climáticas que afetam diretamente a segurança alimentar de milhões.
O impacto da pobreza e o custo dos alimentos
A pobreza é um dos principais motores da insegurança alimentar. Em muitas regiões, o custo dos alimentos básicos consome uma parcela desproporcional da renda familiar, especialmente entre os mais pobres.
No Brasil, por exemplo, famílias de baixa renda já gastam cerca de 22% de sua renda apenas com alimentação. Essa realidade se agrava em cenários de inflação e instabilidade econômica, onde o poder de compra diminui e o acesso a alimentos nutritivos se torna ainda mais restrito.
O combate à fome, portanto, não se resume a aumentar a produção de alimentos, mas sim a garantir o acesso a eles. Isso envolve políticas públicas eficazes, programas de assistência alimentar, desenvolvimento econômico inclusivo e a redução das desigualdades sociais.
A média de consumo de carne, nesse sentido, é um dado que, isoladamente, pode nos levar a conclusões equivocadas e a negligenciar a urgência de ações para combater a fome e a miséria.
Além dos números, a humanidade
O exemplo do consumo de carne é apenas um entre muitos que ilustram a necessidade de uma análise crítica e aprofundada dos dados. As médias são úteis como ponto de partida, mas nunca devem ser o ponto final da nossa compreensão. É fundamental ir além dos números, buscar o contexto, entender as nuances e, acima de tudo, reconhecer as realidades humanas que se escondem por trás das estatísticas.
Ao fazê-lo, não apenas obtemos uma compreensão mais precisa do mundo, mas também nos capacitamos a desenvolver soluções mais eficazes e justas para os desafios que enfrentamos. A verdadeira inteligência de dados reside não apenas em coletar e calcular, mas em interpretar com empatia e em usar o conhecimento para promover um impacto positivo na vida das pessoas.